quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Em Spa, um GP para ficar na memória*

* Por Lito Cavalcanti


Inesquecível este Grande Prêmio da Bélgica. Aliás, como costumam ser as corridas disputadas em circuitos com a qualidade de Spa-Francorchamps. Mas este, por motivos inesperados. A semana já começou com dois pontos de interesse: o primeiro, que a Fórmula 1 tem presença garantida em Spa até 2015 – ótima, excelente notícia; o segundo, seria (e foi) a 300ª participação de Michael Schumacher em um GP. E a mesma semana se encerrou com um número ainda maior de fatos ainda mais dignos de comentários e discussões.

Para começar, claro, as indiscrições e consequentes punições de Pastor Maldonado e Romain Grosjean; a seguir, pela ordem de importância, a ultrapassagem quase desrespeitosa de Kimi Raikkonen sobre o tricentenário Schumacher por fora na entrada da famosa e temível curva Eau Rouge. Seguem-se fatos como a perda de Fernando Alonso de parte significativa da enorme vantagem que tinha sobre o segundo colocado na disputa pelo título; o renascimento de Jenson Button, que quando vence o faz com o estilo dos grandes campeões; a ascensão de Sebastian Vettel na luta pelo campeonato; a evolução da Red Bull, que eclipsou a da McLaren, notável, e a da Ferrari, discreta mas inquestionável.

Aqui, abramos um parêntese: será certo chamar de evolução o que RBR, McLaren, Ferrari, Sauber, Williams, Force India e Toro Rosso mostraram na Bélgica ou seria melhor usar o termo adaptação? Fico em dúvida, me divido, mas acabo usando evolução – mesmo admitindo ser mais por uma questão de hábito. Acima estão nomeadas sete das 12 equipes, e nem citei a Marussia, que mesmo lá atrás chegou a despertar comentários de surpresa, principalmente no sábado, primeira vez que andava com sua nova roupagem aerodinâmica sobre asfalto seco. Esta é a Fórmula 1 atual. De tão próxima, de tão imprevisível, de tão competitiva, nada garante que no próximo fim de semana as estrelas de Spa voltarão a brilhar em Monza.

Quem não vai brilhar definitivamente é Romain Grosjean, o protagonista de uma das maiores, mais estrepitosas caramboladas do automobilismo dos últimos tempos. Tamanha que a FIA, sempre leniente com os costumeiros exageros, desceu sobre ele um punho de ferro que descansava inerte já lá se vão 18 anos. Banido da próxima etapa, Grosjean, espera-se, deve aprender as lições que sua carreira parece não lhe ter ensinado.

Confesso que isso me entristece. Concordo com a necessidade da lição, que não deve ser assimilada apenas por ele, mas por todo o mundo do automobilismo. Principalmente pela FIA, que olha com olhos de vovozinha as atrocidades que se cometem desde o kart. Habituados às vistas grossas do comissariado esportivo, os pilotos repetem e repetem as mais questionáveis, muitas vezes desleais, manobras – nada nunca lhes acontece, nem mesmo uma reprimenda.

Ora, Grosjean é, neste episódio, claramente uma vítima do sistema. Fez pior na GP2 e saiu impune. A diferença é que não havia, então, tantos refletores como neste fim de semana. Pagou pela evidência – e por também eliminar da corrida um piloto que, mais do que líder do campeonato, corre pela queridíssima Ferrari. Isso os comissários deixaram claro em seu comunicado ao aludirem à “eliminação de líderes da disputa do campeonato”. Perigoso este precedente. Imaginem a seguinte situação: Alonso e Vettel colidem em uma das próximas provas. Um deles é considerado culpado, ou responsável, pela colisão – com base no raciocínio dos comissários de Spa, o piloto considerado inocente, ou vítima, pode pedir o banimento do adversário da próxima corrida.

Grosjean errou, e errou feio, não se pode negar. Não foi a primeira vez – foi a sétima corrida em que ele esteve envolvido em acidentes ou incidentes na primeira volta, como gritou o paddock da F1 após aquela desastrosa largada. Em seu socorro, o chefe da equipe Lotus Eric Bouiller argumentou, com razão, que envolvido é diferente de causador. Mas seu apoio, pelo menos publicamente, se limitou a isso. Experiente, ele não se expôs a uma apelação contra a dureza da pena imposta a seu piloto. Certamente, lhe foi lembrado que a última vez que um chefe de equipe tentou tal medida a pena de seu piloto passou de uma para três corridas. Lembram-se? O piloto foi Eddie Irvine, que promoveu carambola ainda mais perigosa na freada do fim da Reta Oposta de Interlagos nos idos de 1994; o chefe de equipe foi o serelepe Eddie Jordan, hoje milionário comentarista da rádio BBC.

Como atenuante, se é que as há, pode-se citar que Grosjean vive um ano de tensão. Resgatado por Bouiller do ostracismo a que foi relegado depois da desastrosa substituição de Nelsinho Piquet na Renault (por ironia a mesma equipe que hoje defende) em 2009, ele tem muito a provar. Velocidade já mostrou, mas não basta isso: exigem-se resultados. E nada melhor do que dar à Lotus, em um circuito consagrador como Spa, a primeira vitória que insiste em escapar por entre os dedos.

Sem dúvida, um plano ousado. Principalmente por ser a pista em que Raikkonen mais venceu, nada menos de quatro vezes. Dá para imaginar o que significou para Grosjean ver seu companheiro de equipe, um campeão mundial, reduzir para 7 a 5 sua vantagem nos qualifies do ano. Pior: o finlandês seria o terceiro no grid, ele apenas o oitavo. Adepto da mentalidade vigente de que todos os riscos são aceitáveis na tentativa de ganhar posições assim que as luzes se apagaram, Grosjean largou como um foguete. O resto é história: se enganou ao achar que já estava à frente de Lewis Hamilton, jogou seu carro para cima da McLaren, como fazem todos os pilotos da atualidade, e por azar deu início a um acidente que a F1 jamais esquecerá.

A ironia é que, em Spa no ano passado, Hamilton cometeu o mesmíssimo erro de julgamento e bateu na Sauber de Kamui Kobayashi. Sorte dele que não foi nos primeiros metros da corrida, o que fez dele o maior prejudicado. Teve de abandonar a prova, mas não se pode esquecer que a manobra estragou a corrida de Kobayashi – que para sorte de Hamilton não era um dos “líderes da disputa do campeonato”, como ressaltaram os comissários no último domingo.

Mas é preciso, sim, dar uma punição exemplar seja lá a quem for. Os limites das disputas no automobilismo em geral vão além da elasticidade, beiram (quando não superam) os limites da lealdade. Mas punições não são para todos. Schumacher, por exemplo, entrou nos boxes de supetão na frente de Vettel e nada aconteceu com ele. Só que Schumacher é Schumacher e Grosjean é Grosjean. Quem esse menino pensa que é? Pau nele, parece ser este o pensamento não só dos comissários da Bélgica, mas também de toda a F1.

Maldonado também padece da mesma intolerância, mas para mim merece bem mais as punições a ele aplicadas do que Grosjean. E apesar de estabelecer um recorde histórico (em um só fim de semana, recebeu três punições que, juntas, somam a perda de 13 posições no grid), o venezuelano não foi suspenso de corrida nenhuma. Explicando melhor: em Spa, ele perdeu três posições no grid por ter bloqueado Nico Hulkenberg no Q1; em Monza, vai perder cinco por queimar a largada em Spa e outras cinco por bater em Timo Glock na relargada.

É ou não incoerente o tratamento dispensado a um e a outro? Principalmente porque em pelo menos duas das ocasiões em que foi punido, Maldonado jogou seu carro em cima de um adversário: em Mônaco, contra Sérgio Perez, sabe-se lá por quê; em Valência, contra Hamilton – se bem que, nesta última, o piloto da McLaren não cumpriu a determinação da FIA de deixar espaço suficiente para um carro quando um adversário tenta a ultrapassagem.

Mas nada que o venezuelano faz se veem acertos. A situação ficou ainda pior quando ele bateu durante uma exibição com seu Williams (o FW 33, do ano passado, é bom esclarecer) durante uma exibição encomendada pelo parceiro/patrocinador/presidente Hugo Chavez nas ruas de Los Próceres. Quem não viu pode ver agora:

Repararam no tipo de piso? O mais liso e escorregadio concreto. Quem estava lá garante que garoava na hora, e que tanto o piloto quanto a equipe queriam esperar por uma melhora do clima. Mas os mandatários negaram, o show (para o qual foram convocados funcionários públicos sob pena de demissão em caso de ausência) tinha de continuar.
O tragicômico episódio deixou Maldonado sob pressão ainda maior – como ocorre com Grosjean. Na Williams, já há quem faça as contas, comparando o que ele trouxe de verba, coisa de 30 milhões de dólares, com o que a Williams deixará de ganhar se não chegar ao fim do ano pelo menos no sexto lugar do campeonato mundial de construtores (onde está a grana grossa). No momento, é a oitava, superada pela Sauber e pela Force India – que erram mais do que acertam e não vivem um bom momento financeiro.

A mesma pressão se abate sobre Bruno Senna, que tem sido consistentemente inconsistente. Não passa bem por um qualify faz tempo, seu melhor lugar no grid foi o nono na Hungria, a única corrida em que entrou no Q3. Na Bélgica, mais uma vez desperdiçou uma boa chance e, agora, perde por 10 a 2 a disputa interna da Williams. Bruno errou no qualify, Maldonado errou na largada. Sua queima de largada, inicialmente difícil de constatar, foi clamorosa. Vista em câmara lenta, não deixa dúvidas:

Quem conseguiu escapar da fervura foram Jenson Button e Felipe Massa. Muito bem, diga-se de passagem. O inglês, que na semana anterior se viu discretamente convocado a ajudar o companheiro da McLaren na luta pelo título, convite de que Hamilton presunçosamente desdenhou, fez uma daquelas corridas que, ano a ano, ele faz. Sua vitória foi magnífica, lembrou a do Canadá no ano passado, quando forçou a derrapagem de Vettel a uma volta da bandeirada depois de ter sido abalroado por Hamilton (que por isso não foi punido) nas voltas iniciais. Em Spa, ele optou pela nova asa traseira, de menor downforce, desenvolvida pela equipe e meteu mais de oito décimos de segundo no companheiro de equipe, que discordou de sua escolha e optou pela asa antiga.

Lewis ficou tão maluco com a sova que fez uma besteira inominável: publicou no Twitter uma foto da telemetria da McLaren em que se via a comparação de sua volta com a de Button. O patrão Martin Whitmarsh mandou-o tirar, mas era tarde, todo mundo tinha visto. De fato, não há muito a ser aproveitado pelas outras equipes, já que Spa é um circuito com exigências diferentes das demais. Mas pegou muito mal. Abalou até a disposição da Mercedes de o acolher caso decida não permanecer na McLaren em 2013.

Isso, porém, depende, principalmente, de Schumacher decidir que já tomou pau suficiente neste seu mal pensado retorno à F1.  Como esta possibilidade aumentou no domingo, depois de Raikkonen passar o heptacampeão na entrada da Eau Rouge sem a menor cerimônia. Não que tenha sido fácil. Na primeira tentativa, Schummy devolveu a passada na reta subsequente, a Kemmel. Na segunda, Kimi abriu a asa antes do alemão e lhe deu adeus. Mas estes detalhes em nada amenizam o fato: foi a ultrapassagem do ano, a que nenhuma reputação consegue sobreviver. Nem mesmo a de um heptacampeão.

Andará a Mercedes a coçar a cabeça nestes dias? Se Michael decidir que já deu, quem chamar? Ora, que Hamilton não se iluda. Na Force India há dois excelentes candidatos, ambos “da casa”: Paul di Resta, que foi o 10º no domingo, e Nico Hulkenberg, que além de alemão foi quarto em Spa e está à frente do companheiro no campeonato.

A única alternativa para Hamilton seria a Lotus – já que a Ferrari não se arriscaria a reeditar a dupla que incendiou a McLaren em 2007 nem Alonso aceitaria formar a mesma dupla. Mas o que garante, primeiro, que ele teria um bom carro em 2013; segundo, que teria boa vida ao lado de um Raikkonen já totalmente readaptado à F1? Nada nem ninguém.

Massa também aproveitou a chance que Spa lhe ofereceu para recuperar um pouco do prestígio perdido dentro e fora da Ferrari. Não foi sua melhor apresentação, a prudência o limitou ao quinto lugar, mas é preciso considerar que fez uma bela recuperação depois de largar, pelo que parece ter sido sua culpa exclusiva, em um discretíssimo 14º lugar. OK, seis posições foram ganhas no melée iniciado por Grosjean e que envolveu Hamilton, Alonso, Kobayashi, Perez e Maldonado, mas ganhou mais três posições – uma delas Mark Webber, outra de Michael Schumacher a outra mais de di Resta.

De fato, parecia ter condições de tentar atacar o quarto lugar de Hulkenberg, mas seria desastroso não terminar uma prova em que Alonso não estava mais. Pela primeira vez no ano. Com isso, eliminou, ou suavizou, as críticas segundo as quais a casa de Maranello disputa o campeonato de construtores com um só carro. É preciso mais, e sua última chance será neste próximo domingo, em Monza. A Ferrari deve tomar e formalizar sua decisão quanto a quem estará ao lado de seu primeiro piloto no ano que vem ainda antes da F1 voltar a se reunir, no fim de semana de 21 a 23 deste mês, em Cingapura. Longe demais de casa para tomar decisões tão importantes. Elas podem até ser finalizadas lá – mas a decisão deve ser tomada ainda na Europa.

Massa não é o único nesta situação. O mesmo ocorre com grande parte dos pilotos. Inclusive Bruno Senna. O que não se sabe é se a Williams considerou sua corrida em Spa boa o suficiente para compensar seu qualify fraco. A dificuldade é que mesmo com todas as presepadas que já aprontou Maldonado, o brasileiro ainda está atrás dele no campeonato. E isso relega a equipe ao tão insuficiente oitavo posto na luta por uma boa fatia quando o bolo dos lucros do ano for dividido. Candidatos ao posto com cheques gordos não faltam.

Este é um dos quesitos que tornará Monza ainda mais importante do que Spa. Sem contar que Alonso já não lidera com tanta facilidade; que os RBR estão tão rápidos que Vettel progrediu do 10º para segundo; que Button teve mais uma de suas atuações próximas da perfeição; que a Ferrari consegue produzir milagres correndo em casa.

Se você está aí dizendo que Spa é Spa e Monza é Monza, não se iluda. Primeiro, porque o que funciona em Spa costuma funcionar também na pista italiana. E com duas corridas em dois fins de semana seguidos, não há tempo para novidades.

Até lá.

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